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Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Dando continuidade à escalação do (meu) “time dos sonhos”, hoje apresento o Camisa 2, que é uma escolha meio óbvia.

Alguns mais velhos poderão protestar, afinal houve o Biguá, que fez história em time tricampeão, era talentoso e extremamente raçudo. Flamengo até as entranhas, de chegar a comer grama após falhar em um lance (isso aconteceu mesmo) e de simplesmente desistir de uma transferência para o Corinthians porque não conseguiria jogar contra o seu Flamengo do coração.
 
E Biguá realmente é, e deve ser, lembrado com carinho, muito carinho e reverência. Mas algumas décadas depois apareceu outro. Um gênio. E é uma história desse craque, craque mesmo, que deixo aqui agora. Boa leitura.
 
2 – LEANDRO
  
1985.
 
Um gigante agoniza.
 
Agoniza derrotado pelo rival, perece de morte a cruel repetição de um enredo que vai sendo exibido pela terceira vez seguida. O domínio, o entusiasmo, a proximidade da glória, o descuido, a estocada, o fim. Cada membro da descomunal nação sente sangrar a alma, enxerga-se impotente diante do colosso que, diante de si, vai novamente soçobrando. Aos poucos.
 
Mas não hoje.
 
Hoje o Flamengo é o senhor da partida, desde o primeiro minuto. Aborda, ameaça, fustiga o gol inimigo, que presencia um interminável zunir de bolas cruzadas, chutadas, lançadas em busca de um objetivo que teima em se manter fugidio, escorregadio. Um morteiro explode no travessão, um chute colocado com aguda precisão é interceptado pelo iluminado arqueiro, que ainda detém várias outras tantas investidas. O adversário traiçoeiro ensaia um, dois contragolpes, até chegar ao gol tantas vezes negado aos atacantes flamengos. É o revés, é a farsesca e enjoativa repetição de um cenário de lágrimas e sofrimento.
 
Haverá angústia. Haverá dor. Haverá baixas. Mas hoje haverá luta.
 
O oponente se posiciona na retaguarda, cava trincheiras e espera que o natural desespero flamengo lhe conceda os preciosos e suculentos espaços para que se desfira o golpe mortal. Não há opção, não há como barganhar. É um gol ou a morte, a submissão ao adversário inferior. O time entende o recado e se atira enlouquecido e entorpecido pela necessidade de sobreviver. A essência da natureza flamenga agora é a marcação de um gol, um mísero gol, sem o qual todas as nossas glórias, nossa história, nossa natureza, serão reduzidas a nada.
 
O Maracanã entende. E vai jogar junto.
 
O Flamengo vai começando a rondar a área inimiga, o bloqueio adversário é frontalmente acossado e começa a dar mostras de que vai ceder. Não é permitido sequer pensar em desistir, o estádio se torna uma arca fervente, o alarido é insuportável a ouvidos sensíveis. Os jogadores correm ensandecidos, suas chuteiras deixam um rastro de sangue no gramado, Adalberto se desentende com um inimigo, cada um agora tem um a menos. Há mais espaços, o bloqueio rui.
 
É a hora do ataque.
 
Resta pouco tempo. O Flamengo começa a sentir os primeiros sinais de estafa. Mas cada berro, cada urro “Mengoooo” é um poderoso estimulante, a bola silva cada vez mais próxima ao gol, o arqueiro começa a realizar defesas, não parece coisa de humano. Adílio costura, Bebeto ginga, Chiquinho atira estabanado, Marquinho cisca, Andrade manda seus torpedos de longe. Nada, absolutamente nada, parece funcionar. Quanto mais forte, mais poderosa, mais selvagem é a determinação flamenga em busca da libertação, mais inverossímil se torna a resistência do bastião adversário, mais pés e mãos milagrosos surgem do nada para, num último instante, desviar uma trajetória que se atirava ao triunfo.
 
Os mais antigos dirão, é o embate entre a mística flamenga e o sobrenatural de almeida. Nelson Rodrigues riria.
 
 
Mas não há espaço para gracejos. O tempo escoa, cruel, inatingível. O Flamengo reúne suas últimas forças para um assalto final. Acuado, espremido e perigoso, o rival consegue, enfim, aproveitar o cansaço rubro-negro e terá sua chance de estocar o derradeiro golpe. Mas Cantarele sai espavorido do gol e se livra de três atacantes, sozinho, com um meneio. Mengooo, Mengooo, Lazaroni berra, ninguém ouve, falta pouco, falta nada, já passou de quarenta há muito, todos os contrários estão dentro da área, e o Flamengo cruza, e cisca, e a bola perereca, e alguém cabeceia, e um torcedor se descabela, e o goleiro voa e defende, e o Flamengo volta, faltam dois, Mengoooo, Mengoooo, e Adílio dribla, e Bebeto tenta, e Lazaroni grita, e Cantarele joga, e ninguém mais pisca, Mengooo, Mengoooo, e vai acabar, e o Flamengo não desiste, e a bola não entra, e o relógio não perdoa.
 
Acabou.
 
Não, ainda falta. Só o suficiente para um suspiro.
 
O Flamengo se debate pela última vez. Andrade alça na área, a defesa espana e a bola se vê, súbito, abandonada. Sozinha. Pisca e quica indolente, à espera da derradeira carícia, do último toque antes que tudo se expire, a última luz se apague, os derradeiros olhos se fechem.
 
O impacto é seco, brutal, mas ao mesmo tempo sedutor, viril. Subjugada, a bola se abandona ao vento, ergue-se em um trajeto implacável e inapelável. Não há mãos, não há pés, não há nada que agora possa obstar seu caminho. Súbito, o choque, o ribombar metálico que reverbera e estremece todo o estádio. De imediato, quase num esgar, outro toque, agora em algo mais macio, a queda suave e a caprichosa escolha por se aninhar indolente e sonolenta, roçando de leve nas redes tão obstinadamente perseguidas por quase duas horas.
 
Agora, o Maracanã está parindo um trovão, que irrompe monstruosamente gutural e vara, em uma fração de som e luz, um estádio, uma cidade, um estado, um país. Uma algazarra sem precedentes toma corpo, acordam-se os que dormitam, erguem-se os moribundos, ressuscitam-se os mortos. Ninguém está autorizado a ignorar essa verdadeira profissão de fé e festa flamenga, uma avassaladora e caudalosa força da natureza tão insistentemente represada. Um gol, um gol que liberta, um prosaico gol que demonstra que ao Flamengo e ao seu povo se nega simplesmente nada.
 

Nos vestiários, o grande heroi da noite apenas sorri, e chora, e fala, e se tranca quieto, e não sabe mais o que fazer. Não deixa de ser justo e sintomático que logo Leandro, o melhor e mais talentoso dos vinte combatentes restantes em campo tenha sido o ungido para desferir aquele petardo de fé. O Leandro campeão do mundo, o Leandro lateral que seus joelhos mal formados mandaram pra zaga, o Leandro igualmente primoroso em ambas as posições, o Leandro da cabeça levantada, da classe aristocrática, dos passes milimétricos, dos cruzamentos com a mão, do quase circense domínio de bola, da habilidade na antecipação a afoitos atacantes, o Leandro capaz de dominar qualquer tipo de bola que lhe é enviada a qualquer trajeto e velocidade, o Leandro que inverte papeis e desarma atacantes ao mesmo tempo que lhes senta ao chão numa ginga, fazendo com que o jogador tenha receio de tentar driblá-lo.

Mas agora, o Peixe-Frito é, além de tudo isso, um libertador, um destaque, uma divindade, um heroi.
 
E ele descobre que é bom ser heroi.

10 comentários em “Alfarrábios do Melo

  1. Melo e amigos, pela dramaticidade e pelo fervoroso apoio de fé flamenga dada pela Magnética, esse FLA X flu embora não saímos com a vitória, é digno de entrar para a história de grandes lembranças pela raça exibida por todos em campo e a entrega descomunal da torcida na arquibancada, sensacional.

    A exemplo do post anterior onde me antecipei e “apostei” que a Lateral direita seria composta pelo gênio Leandro mais uma vez darei uma de “profeta ” e não tenho dúvida que a Zaga Central virá formada pelo Domingos da Guia ” O Divino “.E outra, Melo, parabéns pela Menção honrosa ao raçudo e legítimo rubro-negro Biguá.

  2. Grande Peixe Frito! Salve Salve! To ansioso pelo término da escalação!

    Esse espaço aqui não pode morrer. Mto mais charmoso e tradicional do que o Buteco, pra onde foi a maioria da galera…

  3. Monstro.
    Eu estava no Maraca nesse dia, e vibrei mais do que em algumas conquistas de campeonatos.
    E o Leandro é meu ídolo, escrevi um crônica sobre ele (e o Lico) aqui no Flamengonet há uns anos atrás, “O 2 e o 22”.
    Abs!

  4. Funcionários do Maracanã ameaçam greve nesta sexta-feira.Com inauguração prevista para 24 de maio, prazo já foi adiado duas vezes e volta a ser ameaçado.FONTE : http://www.jb.com.br

  5. Um dos maiores jogadores da historia do nosso futebol.

    Uma pena esse problema no joelho, que encurtou sua carreira

  6. Um time que deve atrapalhar os brasileiros é o newells old boys com sua espinha dorsal: heinze, maxi rodriguez e ignacio scocco. Um xerife, o camisa 10 e um goleador, sendo que o heinze e maxi foram por muito tempo titulares da seleção argentina disputando copa do mundo.

    Seria interessante que o wallim e pelaipe ficasse de olho nesse time, tentando quem sabe trazer para o meio do ano a dupla scocco e maxi

  7. Poderiamos ter essa escalação:
    – Felipe –
    – LM – Gonzalez ( AS) – Renato – JP
    – Amaral ( caceres) – Elias
    – maxi rodriguez –
    – CE – Scocco – Rafinha

  8. O maior que eu já vi jogar na sua posição. Craque. Íntegro. Grande caráter.

    Já havia escutado Raul Contando essa história, que pincei daqui:
    http://f-play.blogspot.com.br/2008/02/leandro.html

    […] O ex-goleiro Raul Plassmann, companheiro de Leandro na geração de ouro do Flamengo, narrou história pitoresca a respeito do lateral: Após discutir com Leandro, num tiro de meta, Raul intencionalmente deu um bico na bola com toda sua força na direção do craque. Uma verdadeira “bola quadrada”, que ao jogador vulgar, o domínio pareceria impossível. Leandro não só matou a bola que colou em seu peito, como saiu jogando e driblou dois adversários. Logo após, virou-se para Raul e gritou:
    -Aí, véio! Eu jogo pra caralho! […]

  9. Nenhum outro texto resumiria tão próximo à perfeição o que é Flamengo e Leandro. Parabéns Melo, emocionante como poucos.

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